Hoje em dia, com o processo de virtualização da vida, novos esquemas de vivência são formulados, novos espaços são construídos, novos saberes são delineados e velhos limites são deixados para trás. Sobremodo, é fato consumado que a revolução técnica e tecnológica impulsionou a sociedade a um salto qualitativo e quantitativo jamais alcançado nos séculos pretéritos.
Contextualizando a partir da realidade pandêmica, percebe-se que esta tornou transparente a necessidade quase vital e dependência quase figadal de tecnologia pelo indivíduo contemporâneo. Certo é que a pandemia da COVID-19 não mudou apenas a nossa relação com o espaço físico, mas, sobremaneira, modificou drasticamente nossa relação com o espaço virtual: aulas virtuais, audiências virtuais, produções e comunicações por via remota etc.
Dentro dessa conjuntura, assoma-se um ramo de estudos ainda em fase seminal, trata-se de uma espécie do gênero “Direito à privacidade”, o “Direito à Privacidade Intelectual”.
Assim sendo, cabe tecer algumas perguntas: até onde se pode afirmar que se possui um conhecimento novo? Até que ponto a consciência e a autonomia intelectual estão protegidas? Qual o nível de pureza das ideias? Qual o grau de influência que esta ou aquela ideia sofreu tacitamente? E, principalmente, qual o nível de segurança desta ideia enquanto ainda está em construção, in privatis? Todas essas indagações estão nas mentes dos estudiosos da Epistemologia contemporânea.
Pensando na proteção desses elementos internos da cognição humana, percebe-se a premência da privacidade, sendo esta essencial para uma vida saudável nos diversos vetores da condição humana e que seus produtos, embora não percebidos prima facie, são nevrálgicos para a ação, evolução, involução e reciclagem dos indivíduos e da sociedade, auxiliando na consecução dos objetivos socioeconômicos e culturais.
Deste modo, a partir da ótica constitucional, têm-se os mandamentos do artigo 5º, incisos IX e X da CRFB/1988. Estas regras, embora sintéticas, servem de fulcro para erigir cognição sobre a temática proposta, possibilitando compreensão que o conceito constitucional de “vida privada” suporta variadas especificações, concorda conosco Bolesina e Faccin:
[…] a privacidade é um gênero de múltiplas espécies e funções que vão da proteção ao “direito de ser deixado só” até o poder de controle e fruição informacional de dados pessoais (ETZION, 2015, p. 61). Não por outro motivo, Rodotá concluiu que a privacidade contemporânea, em suma, presta-se à proteção da “liberdade de escolhas existenciais” (RODOTÀ, 2008, p. 92-93.), isto é, no caso da internet, no poder de decidir quais informações serão expostas e como, quando e onde serão reveladas[1].
À vista disso tudo, emerge-se a preocupação sobre as liberdades de consciência e de autonomia do processo cognitivo no contexto da sociedade hiperconectada. Ainda mais, porquê a privacidade intelectual se faz necessária para o robustecimento da cultura e dos ideais democráticos, pois o direito de desenvolver ideias em particular e que só são expostas pelo arbítrio do próprio autor expande o processo civilizacional do presente século, em plena consonância com o Artigo XVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Percebe-se, assim, que os registros eletrônicos são verdadeiras espadas de dois gumes, pois no mesmo estante que podem enriquecer podem também ceifar, direta ou indiretamente, a privacidade exigida no ato criador; uma vez que tudo é gravado, registrado e, às vezes – ou será sempre? –, disponibilizado sem efetivo controle do criador.
Essa questão de incertezas sobre a segurança relativa à privacidade intelectual deve fazer lembrar que nem todos estão maturados e psicologicamente preparados para expor suas ideias. Essa natural insegurança nasce da desconfiança se criação e o processo criador são apenas do autor ou se existe um “Big Brother” a controlar e observar tudo. Destarte, expressa acertadamente Ana Luisa Leal e Daniel Becker:
O direito à proteção da privacidade intelectual, por sua vez, cria uma tela contra essa vigilância exacerbada. Afinal, a privacidade, configura-se como patrocinadora da criatividade; ela é capaz de estimular ideias, promover a democracia e inovar. A presença, ainda que oculta, de terceiros sufoca a evolução de ideias, fazendo-se necessário um escudo de isolamento promovido pela privacidade intelectual[2].
Finalmente, mesmo sendo o homem um ser social e político, como afirmou Aristóteles, entende-se que a proteção do domínio interno da cognição e de seus produtos diretos (consciência, opinião, crença, exploração intelectual etc.), por meio do direito à privacidade intelectual, deve ser garantida, resguardando todos da “vigilância silenciosa” e da “bisbilhotice tecnológica”, plasmando, desse modo, uma maior segurança aos indivíduos para expressar livremente seu pensamento, enriquecendo, assim, o processo de cidadania e democratização da sociedade.
Por Alexandre de Paiva Targino, estagiário do ASBA Advogados Associados.
[1] BOLESINA, Iuri; FACCIN, Talita de Moura. A responsabilidade civil por sharenting. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 27, p. 215, 2021. Disponível em: <https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/285>. Acesso em: 11 jun. 2021.
[2] LEAL, Ana Luisa; BECKER, Daniel. Privacidade intelectual: uma proposta de regulação. In: BECKER, Daniel; FERRARI, Isabela (Coords.). Regulação 4.0: novas tecnologias sob a perspectiva regulatória. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 182.